Professor Argus Vasconcelos
Crônica escrita pelo Professor Argus Vasconcelos, amigo e companheiro de lutas em defesa da Universidade Pública, gratuita, laica e de qualidade.
Efeméride
de minha prisão política
No dia 05 de janeiro
de 1970, há 48 anos atrás, fui preso pela ditadura empresarial-militar, em
Brasília, quando tínhamos acabado de receber o certificado de reservista e
descíamos alegres, eu e meus cinco companheiros, para comemorar o evento.
Na porta do
Ministério do Exército, havia uma viatura (das famosas “veraneios”) com três
agentes da PF. Desceram do carro e um deles, o mais velho, me deu voz de
prisão: - “Polícia Federal, está detido pela Lei de Segurança Nacional”. Meus
companheiros perguntaram o que estava ocorrendo e os agentes, de armas na mãos,
disseram para seguir em frente. O sentinela do ministério ainda chegou a armar
sua metralhadora, pensando tratar-se de um assalto.
Quando embarquei
naquela viatura, pensei comigo que havia chegado a minha hora. Estávamos
vivendo o início do governo Médici, e a ditadura recrudescia a repressão aos
movimentos de resistência.
Cheguei preso a uma
delegacia da Asa Sul, que era uma espécie de depósito para classificação dos
presos políticos. Ao chegarmos, um agente de plantão perguntou: De onde é esse?
Ao que responderam: do ME (movimento estudantil). Depois fiquei sabendo que a
classificação inicial era: do movimento estudantil, do movimento sindical
operário, camponês ou “terrorista” (do movimento armado de resistência), que
era da barra pesada e logo encaminhados para a tortura no famigerado Doi-Codi.
Fiquei numa cela com
beliches e logo reparei que tinha companhia, que estava enrodilhado numa cama
coberto até a cabeça. Quando eu entrei, ele acordou e o reconheci logo;
tratava-se de Issahan Yuseff, um dirigente do grêmio estudantil do CIEM da UnB,
onde havíamos estudado e militado juntos no ME. Ele colocou logo o dedo na boca
para que não nos falássemos. Issa, como era conhecido, era de origem palestina.
Muitos anos depois, vim a saber que tinha voltado à Palestina e se integrado ao
movimento de resistência palestina e lá teria morrido em combate com as forças
de ocupação israelense.
Na mesma noite
começaram os interrogatórios. Acordavam-me de madrugada e numa sala com uma forte luz nos olhos, um
interrogador que eu não via a cara, fazia ao perguntas, enquanto um datilógrafo
escrevia numa máquina as respostas. As perguntas eram quase sempre as mesmas
sobre as organizações, nomes e atividades de militantes do movimento. Eu
tratava de esconder a identidade dos companheiros alegando os “nomes de guerra”
que usávamos no movimento. Um dos interrogadores, então disse que eu não estava
“entregando”, mas quando fosse levado ao Doi-Codi, sob tortura, eu iria contar
a história toda.
Durante as noites na
prisão, era sabido que o pessoal do Doi-Codi, chegava para buscar os presos
para o interrogatório até meia noite e ouvi várias vezes, altas vozes que
diziam nomes e endereços para serem avisados e vi também o seu retorno, depois
de alguns dias, sendo arrastados pelo corredor com os corpos feridos e
deformados pela tortura.
A partir de então,
esse era o meu grande temor, de não suportar a tortura e revelar nomes e
atividades consideradas “subversivas”. Então, tentei mentalmente montar uma
versão coerente para não entregar ninguém à repressão. Versão que repetia toda
vez que era interrogado, o que causava muita irritação aos interrogadores.
Depois de alguns dias
de prisão, meu pai conseguiu localizar o meu paradeiro, graças a um seu parente
general do exército. Quando veio me visitar me contou toda a sua longa
peregrinação para localizar-me.
A partir de então,
comecei a desfrutar de duas horas de banho de sol usando uma vassoura para
varrer o pátio. Recebia o almoço que meu pai enviava, que era bem melhor do que
a insuportável boia da prisão. Acabaram-se os intermináveis interrogatórios e
terminei não sendo levado para a tortura no Doi-Codi.
Depois de um mês de
cadeia, meu pai veio para soltar-me, recebendo todas as exigências da parte dos
agentes de soltura: “Não pode fazer isso, não pode fazer aquilo” etc.
Foi a primeira vez
que percebi a cara feia da morte de frente e fiquei impressionado com a minha
calma determinação em cair com dignidade. Depois, peguei minha trouxa, respirei
fundo e entrei no carro, olhando a paisagem pelo vidro da
janela, senti que a vida valia a pena, pois, fazia um belo dia de sol em
Brasília.
Argus
Vasconcelos de Almeida
Recife,
05 de janeiro de 2018.
Professor Titular do
Departamento de Biologia da UFRPE, pesquisador em história e filosofia das
Ciências Biológicas.
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